domingo, 5 de abril de 2009

Lula, afinal?

A coluna de Fernando Henrique neste domingo é bem interessante. Trata da reunião do G-20 que está “sendo saudada com alívio”. Diz ele que foi preciso “uma crise dessa gravidade para despertá-los para a natureza da questão: há um descompasso no plano mundial entre as formas institucionais e o mercado”. Fernando Henrique diz em seguida: “Disso há muito se sabia”. E completa a abertura do texto com “não faltaram vozes isoladas a clamar por uma reordenação global, não só do mercado, mas das instituições financeiras e da sua regulação”. Apesar da clara tentativa de se inserir de qualquer maneira nesse novo momento de superação da crise, o texto é bom e até bem humorado, quando ele acrescenta um “sic” após a expressão “talibãs moderados” de Hillary Clinton – ironia de quem sabe muito bem que é contraditório associar “moderação” com “talibãs” (fundamentalistas islamitas). O problema do texto é que ele não se refere em momento algum ao grande vitorioso desse encontro do G-20 em Londres. Mas, pelo título que ele escolheu (“Luz, afinal?”), imaginamos que a figura sorridente de Lula ficou-lhe bruxuleando o tempo todo. Veja o texto completo:
Luz, afinal?
Diante da crise, o revigoramento da ordem global começa a ganhar fôlego
A reunião do G-20, em Londres, está sendo saudada com alívio. Finalmente os líderes mundiais começam a acertar o passo. Foi preciso uma crise dessa gravidade para despertá-los para a natureza da questão: há um descompasso no plano mundial entre as formas institucionais e o mercado. Disso há muito se sabia. Nos anos 90, quando a globalização financeira começara a se fazer sentir com força, o problema já se colocava: a falta de regas internacionais mais objetivas complicava a situação de vários países que, eventualmente, nada tinham a ver com o estopim da crise. Desde então, não faltaram vozes isoladas a clamar por uma reordenação global, não só do mercado, mas das instituições financeiras e da sua regulação. Clamava-se, ainda, por uma reordenação comercial (vejamse os esforços de Doha), pela reordenação das políticas de meio ambiente (os acordos de Kioto), pela reordenação bélica (com o empenho nos tratados de não proliferação atômica ou no controle dos mísseis), pela reforma do Conselho de Segurança e assim por diante. Mesmo os esforços globais de redução da pobreza e de melhoria da qualidade de vida foram objeto dos acordos que resultaram nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, aprovados pela ONU em 2000. Tudo isso caminhou a passos de tartaruga porque não é fácil complementar as ações que se devem dar no plano nacional com as que são de outra natureza e dependem de regras e decisões globais. Desde Kant se sabe que a paz universal requer um direito universal. Por que as finanças globalizadas escapariam dessa condição? Mas também se sabe que o fracasso da Liga das Nações, se não foi responsável pela Segunda Grande Guerra, abriu espaço para que a crise de 1929 despedaçasse o mundo em isolacionismos protecionistas e, no final, em guerras de conquista. Foi pela visão generosa de um mundo de paz e prosperidade que Roosevelt — como se vê em sua correspondência com Stalin durante a guerra — cedeu tanto aos soviéticos. Queria construir a ONU mantendo a União Soviética comprometida com a ordem global. Apesar da Guerra Fria e de tantos avatares mais, a ONU evitou uma guerra mundial. Hoje, diante da impossibilidade de os Estados nacionais controlarem a crise financeira, o revigoramento da ordem global começa a ganhar fôlego. Até aqui, com a impotência das instituições de Bretton Woods para enfrentar a maré de papéis tóxicos espalhados pelo mundo, o que vimos foi o Banco Central dos Estados Unidos e o Tesouro americano espalhando recursos aos trilhões de dólares, tentando irrigar o sistema bancário. Os resultados, entretanto, foram magros até agora. O mercado permanece amortecido pelo temor dos bancos em fazer novos empréstimos e pela preferência dos eventuais tomadores em se resguardarem. Só deseja empréstimo quem já está quebrado. Os europeus, ingleses à frente, mais prudentes, injetaram capital nos bancos e assumiram parcialmente o seu controle. Consequentemente, surgiu um cisma que poderia paralisar as decisões em Londres: de um lado, a Europa tratando de impedir que os estímulos fiscais arruínem o futuro de sua moeda e, do outro, os americanos, donos da mágica de produzir dinheiro lastreado na confiança no governo e em sua economia, provendo liquidez e aumentando os déficits sem muita preocupação com equilíbrios fiscais. Entretanto, como o mundo agora é mais plano, os chineses deram o grito de alarma pela boca do primeiroministro: e se o dólar desvalorizar? Por certo, o problema hoje não é a inflação, mas a deflação; as taxas de juros americanas podem se manter rentes a zero. Mas será assim amanhã se a dívida crescer a tal ponto que coloque em questão, ao longo do tempo, a capacidade de recuperação dos orçamentos americanos? Foi significativo ver que no G-20 falou-se de uma cesta de moedas que sirva de reserva, e houve a decisão de aumentar o capital do FMI e até de utilizar os direitos especiais de saque, uma espécie de dinheiro internacional próprio do FMI. Noutros termos: há no horizonte distante o que Keynes previra e desejava, a formação de uma Autoridade Monetária Central. Não será o Banco Central Europeu uma antevisão do que poderá ocorrer em décadas adiante? O Conselho de Estabilidade Financeira não poderá exercer papel efetivo na coordenação das políticas e em seu controle? Reordenação mais profunda do sistema financeiro global implicaria em um novo arranjo político, do qual estamos distantes. Mas, assim como o unilateralismo dos neoconservadores e do governo Bush esticou a corda nos dois lados, invadindo países e dando licença aos mercados para fazer o que quisessem sem consultar ninguém, a atitude do governo Obama (Hillary Clinton falando até de incluir os talibãs “moderados” (sic) na mesa de negociações) prenuncia algo melhor para o mundo. Gordon Brown foi perspicaz e procurou os emergentes para aumentar suas chances de liderança apostando em mais regulamentação. Isso, com maior legitimidade, ampliando-se o número de atores que decidem, talvez seja a fórmula para se falar com mais seriedade em um outro e melhor mundo. Georges Soros, voz dissidente e clarividente nas finanças, colocou a outra condição para um ponto de partida positivo: será necessário prover muito dinheiro para evitar tragédias maiores nos países pobres e em algumas economias emergentes. O G-20 falou de US$ 1 trilhão. É um começo. Os ativos globais perderam de US$ 30 trilhões a US$ 50 trilhões! Os socorros de todo tipo, incluindo-se estímulos fiscais, devem roçar os US$ 2 trilhões, as promessas vão aos US$ 5 trilhões. Em Londres, os líderes esperam que lá pelo fim de 2010 a economia flua outra vez. Tomara. Isso se houver restabelecimento da confiança e do crédito e avanços no reordenamento político e financeiro do mundo. Se, entretanto, houver fracasso, o protecionismo e o nacionalismo bélicos podem voltar à cena. Espero, por isso, que a reunião do G-20 não se resuma a uma oportunidade fotográfica.