domingo, 1 de julho de 2007

Jango merece justiça - e o Brasil também

O Globo de hoje publica excelente reportagem de Carter Anderson sobre o processo que a família do ex-Presidente João Goulart move contra o governo americano pela ajuda que a CIA deu ao golpe militar de 64. Esse processo deveria a assinatura de todo o povo brasileiro. Reproduzo a entrevista na íntegra. Mais informações clicando aqui.
Entrevista: João Vicente Goulart e Denise Goulart Desde 2003, Maria Thereza Goulart, viúva do ex-presidente João Goulart, e seus dois filhos, João Vicente e Denise, travam uma luta silenciosa na Justiça para responsabilizar os Estados Unidos pelos danos causados à família em 1964 e nos anos posteriores ao golpe militar. A família decidiu pela ação quando Lincoln Gordon, embaixador dos EUA no Brasil naquele período conturbado, admitiu que a Agência Central de Inteligência (CIA) americana financiou, nas eleições parlamentares de 1962, opositores de Jango. E decidiu quebrar o silêncio após Ancelmo Gois divulgar em sua coluna no GLOBO, em 17 de junho, a existência da ação. A indenização pedida é de R$ 3,496 bilhões: R$ 3 bilhões por danos morais e R$ 496 milhões por danos materiais, valor calculado por uma perita. Carter Anderson: Como surgiu a idéia de requerer uma indenização ao governo dos EUA pelo golpe que derrubou seu pai? JOÃO VICENTE GOULART: Eu estava em São Paulo, em novembro de 2002, quando soube que o ex-embaixador Lincoln Gordon estava no Brasil para lançar um livro sobre o período de 1964 e que ele tinha usado a CIA, com dinheiro americano, para depor o presidente João Goulart. Para minha surpresa e indignação, não ouvi manifestação nem de parte do presidente Fernando Henrique, nem do presidente eleito, Lula, sobre o que me deixou indignado, ultrajado, como brasileiro. Carter Anderson: Gordon disse que, em 1962, a CIA financiou no Brasil, clandestinamente, a eleição de políticos de oposição, não? JOÃO VICENTE: Ele falou que foram usados cinco milhões de dólares de verba secreta para derrubar Jango. Não contestamos o Senado brasileiro como instituição pública, mas aquela legislatura, que foi financiada com o dinheiro de verbas secretas americanas, tal qual as palavras de Lincoln Gordon, réu confesso neste processo. Quando (o presidente do Senado) Aldo Moura de Andrade decreta vaga a Presidência da República, num golpe branco, o presidente João Goulart se encontrava em Porto Alegre. Estava lá o líder do PTB com uma carta do chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, dizendo que o presidente estava em Porto Alegre, tentando resistir. E o senador declara vaga a Presidência e dá por encerrada a sessão. Isso é um golpe branco, financiado pelos Estados Unidos. Como fica a carta da OEA (Organização dos Estados Americanos), a não intervenção em outros Estados? Carter Anderson: O que a família deseja? JOÃO VICENTE: A família quer que nossa Justiça nos permita apenas citar o governo americano sobre um dolo material, moral e, principalmente, de imagem, porque eles derrubaram um presidente eleito. E nós estamos tendo esse grande antagonismo jurídico entre o que é ato de império e um ato de gestão. Nosso Ministério Público diz que foi um ato de império. Carter Anderson: Qual a diferença entre esses termos jurídicos? JOÃO VICENTE: Ato de império é o que praticou o governo dos Estados Unidos, autorizado pelo Senado americano, ao invadir o Iraque. (num ato de império, a Justiça brasileira não pode aceitar um processo contra um Estado estrangeiro). Em 64, não, foi um ato de gestão dos agentes da CIA. Não houve autorização do governo americano para usar verba secreta e comprar políticos brasileiros. É com base nisso que estamos pedindo à Justiça brasileira que cite os Estados Unidos, para que se pronunciem a respeito. Podem dizer que não reconhecem a Justiça brasileira por entender que o Estado americano é imune. Carter Anderson: E nesse caso? JOÃO VICENTE: Vamos ao Tribunal de Haia, mas queremos que a Justiça brasileira não nos negue o direito de citar o governo americano. Nós vamos provar que houve intervenção. O “Fantástico” divulgou o trabalho de um pesquisador, Carlos Fico, com documentos comprovando que havia uma frota americana na nossa costa, a Operação Brother Sam. Podemos chegar ao cúmulo de ter que ir a Haia processar a Justiça brasileira, se não nos derem o direito de citar os EUA. E nós vamos até lá. Carter Anderson: Como se cegou ao cálculo da indenização? JOÃO VICENTE: Nós só estamos falando porque isso vazou.Essa é uma ação pública desde 2003, e nunca foi noticiada. Mas, no momento em que vaza, e saiu um valor na coluna do Ancelmo Gois, precisávamos explicar. O valor foi uma solicitação do próprio juiz, sob pena do não prosseguimento da ação, e nós contratamos uma perita de São Paulo. Nosso objetivo é apurar a imoralidade que esse indivíduo, Lincoln Gordon, reconheceu. Houve a quebra da soberania brasileira. DENISE GOULART: Ele (Jango) chegou ao exílio sem nada. Mas a gente não botou nenhum valor (de indenização por danos materiais e morais, na inicial do processo). É bom que isso fique claro. Carter Anderson: Como o presidente chegou ao exílio? JOÃO VICENTE: Os bens deles foram bloqueados durante quase um ano. Eram quatro fazendas: Três Marias, Rancho Grande, Santa Luiza e Cinamomo. Em torno de 20 mil reses. Carter Anderson: Houve saque? JOÃO VICENTE: Claro. Prenderam o administrador da fazenda, roubaram o gado. Só sobrou terra. Uma das contas geométricas da perita é o da multiplicação das reses. Carter Anderson: Quantas fazendas a família conseguiu reaver? JOÃO VICENTE: Duas, as de São Borja: Rancho Grande Santa Luiza. Mas a Três Marias, em Mato Grosso, não conseguiu. Havia 1.500 famílias de posseiros dentro. Carter Anderson: O que vocês esperam desse processo? JOÃO VICENTE: Até hoje, quando se fala na figura de Jango, há um certo receio. Temos dificuldades para memorial (João Goulart), em Brasília, com projeto de Oscar Niemeyer, que vai ter os restos mortais do presidente e, embaixo, uma sala interativa que contará as reformas de base, a reforma agrária, a lei das remessas de lucros... Recebemos um terreno do governo do Distrito Federal, no governo Roriz, mas agora, no atual, dizem que não é mais ali. Sempre tem um problema. DENISE: Mesmo depois que ele morreu e nós voltamos, a dificuldade para resgatar o que houve nesse período é muito difícil. Há muito silêncio em torno dele. Todos os governos silenciam quando se trata de João Goulart. Carter Anderson: Há resistências hoje, mesmo num governo presidido por um ex-sindicalista? JOÃO VICENTE: Não. Inclusive houve a entrega de documentos (referentes a João Goulart) pela Presidência da República, em abril deste ano. Foi um ato de coragem. São documentos do golpe. Eu pedi ano passado. A ministra Dilma (Rousseff, chefe da Casa Civil)) pediu ao Arquivo Nacional, que processou tudo. São 2.700 documentos dos porões da ditadura. Carter Anderson: Foram produzidos por quem? JOÃO VICENTE: SNI, Cenimar, são vários. Vão até 76 (ano da morte de João Goulart, aos 57 anos). Vamos colocar à disposição do público, através de um site. Estamos tentando obter recursos. A ministra Dilma nos entregou com muita celeridade. Faltam alguns órgãos que ainda não foram digitalizados: Itamaraty, Justiça Federal e Polícia Federal. Os que já vieram são das Forças Armadas, Abin, Dops e Conselho de Segurança Nacional. Carter Anderson: Com essas ações, vocês esperam resgatar a imagem de seu pai? JOÃO VICENTE: Sem dúvida. Pelo menos o instituto (João Goulart), presidido por mim, e a família querem levantar essas questões para que essa nova geração não repita esses erros. DENISE: Para que conheçam a história, não só a escrita pelos vencedores, mas a dos que foram exilados, torturados... o outro lado.